16 janeiro 2011

Lembranças



Chorei vendo as notícias na TV. Não sou de ficar matando tempo assistindo esse aparelho, mas diante das notícias acerca do deslizamento de terra na região serrana do Rio de Janeiro não resisti. Acho que qualquer ser humano, seja decorrente de reações emocionais, seja pelo esforço genético de manutenção da espécie, ou qualquer outro fator, fique consternado em ver a quantidade de vidas que foram ceifadas nessa tragédia, a quantidade de órfãos que restaram, a quantidade de idosos sem amparo familiar, a quantidade de famílias inteiras que não existem mais. Sem falar de memórias que se esvaíram na mesma velocidade em que os signos que as despertavam foram engolidos por lama. Não se pode mais resgatar essas imagens, as pessoas, sua história, sua existência. Ela terá que ser reconstruída, em cima de um terreno ainda mais frágil do que o que habitavam antes.
Fiquei observando o quanto as pessoas estão perplexas com a tragédia. A maior parte sequer expressa choro, acho que o choro já é pouco. As pessoas que restaram contam o que e quantos familiares perderam como fazem as contas das compras no supermercado, sem expressão. Perdeu-se a emoção, a emoção restou para quem não estava lá.
Não é uma memória entre as quais eu gostaria de ter, sem dúvida, mas se trata de uma das quais eu não quero esquecer. Olhar nesses momentos para a própria fragilidade e a incapacidade de prever o futuro é certo como a água segue pelo caminho mais fácil. Olhar a própria figura humana, como um espelho de si mesmo, refletindo uma imagem do que eu sou, frágil. Não há imortalidade, não há dinheiro, não há nada, não há, houve-se, mas agora não há mais. Mas há, sempre houve, vai continuar havendo, e havendo. Não sei se nosso idioma, ou minhas palavras expressam bem o que desejo representar, mas enfim, consta uma tentativa. Não farei melhor que isso, é a vez do leitor ter trabalho.
Foi a primeira vez que refleti sobre o chavão “não tenho palavras”. Realmente, não é possível ter palavras nessa situação. Não se tem nada mais, muito menos as palavras, o dicionário seria um utópico luxo.
O ponto no qual desejo chegar na verdade é sobre a intolerância humana. Diante dessas notícias e reflexões me questiono ainda como algumas pessoas podem conviver com a intolerância de um filho gay, de um genro negro, do colega de trabalho feio, da mãe que pega no pé, do pai que quer que você seja um homem de respeito, do professor amargurado que exige muito dos alunos, do seu vizinho tatuado, do conhecido que é ateu (mas que você provavelmente não quer ouvir porque desperta medo), do africano, do muçulmano, do europeu que até é melhor que você (e você nem consegue dizer que pensa nisso), e ouso dizer que até mesmo da sua própria vontade. Não se nota a magnitude da existência humana e seus questionamentos, incutidos na mágica e delicadeza dessas extraordinárias relações e diferenças humanas. Não entendemos sequer a finalidade do sentimento “amor”.
Como cientista, consigo atribuir ao amor a conotação de um esforço para a manutenção das espécies, no caso dos gays um comportamento altruístico, no caso dos de cores e raças diferentes uma linha que favorece a miscigenação e assim maior equilíbrio do esforço evolutivo de nossa espécie. Ainda temos os fatores sociais, já notaram como o desequilíbrio financeiro e cultural leva a um equilíbrio financeiro e cultural. Como diferenças resultam em semelhanças, e em como não se pode nem ao menos “sub-viver” sem as diferenças. Não se instaura um equilíbrio ecológico com apenas um organismo, não se completa nem ao menos um ciclo com apenas um organismo.
Por que o ser humano ainda teima em vender a padronização (que não é a problemática) em detrimento das diferenças (aí está a problemática). Isso não me deixa indignado. O que me deixa indignado é o sentimento velado que as pessoas têm em relação a isso enquanto não são capazes de dizer o que realmente pensam, pela questão idolatrada chamada de ética. O ser humano não é mau ou bom. É covarde.
Como é confortável saber que alguns tentam não ser.

14 janeiro 2011

Demissão

Sempre me senti atraído pela gastronomia, lembro-me de certa vez quando meu irmão (cinco anos mais velho que eu) explicitou sua indignação por eu não ter escolhido esse curso na faculdade. Meu histórico de faculdades foi um tanto quanto intrigante. Saí do colégio e fui estudar física em uma excelente faculdade pública. Lembro-me que senti a maior angústia, até então, por estar saindo de casa, uma sensação de abandonar meus pais, mostrando a minha crueldade. Não me identifiquei com o curso, ou talvez com o fato de ter que estudar umas cinco disciplinas de cálculo com nomes diferentes, e abandonei a faculdade no primeiro semestre.
Voltei a morar com meus pais. Arrisquei arquitetura na UNICAMP nessa época, mas não obtive muito sucesso na segunda fase do vestibular, havia me divertido demais numa virada na praia com meus amigos, sem perceber que deveria estudar.
Um tempo depois comecei a refletir silenciosamente sobre um curso na área das ciências biológicas, foi quando comprando sapatos em uma loja encontrei com a mãe de uma amiga, a qual afirmou durante nossa conversa que eu tinha o perfil dessa área, e minha mãe concordava com ela. Sempre tive muita facilidade nessa área. Minha decisão se configurou nesse ponto, numa loja de sapatos, na cidade de Itapira, unicamente por um fator estatístico, comum e banal. É muito interessante entender em quais curvas acontecem as mudanças.
Estava longe do colégio, apenas estudando por conta própria, há três anos e com poucas perspectivas de obter uma boa classificação no vestibular. Para minha extrema surpresa, eu entrei para o curso de biologia na UNESP. Foi como me senti liberto de uma realidade, a qual de alguma maneira eu sabia desde pequeno que mudaria. Dói-me a lembrança de minha mãe chorando no portão de nossa casa enquanto eu me mudava ouvindo Elis Regina... “Como nossos pais”.
Apaixonado pelo meu novo curso, morando em outra cidade a mais de um ano, fiquei sem dinheiro e devendo ao banco (isso sempre acontece quando dão limite de crédito especial e cartão de crédito para universitários). Decidi procurar emprego, queria fazer uns bicos pra levantar um dinheiro extra. Só consegui emprego em um restaurante árabe, como funcionário fixo à noite, porque minha faculdade era integral. Aprendi o que pude desse tipo de comida, a qual nunca havia tido contato. Trabalhava de segunda a segunda com uma folga semanal (nunca em quinta, sexta ou sábado) e um domingo ao mês. Fiquei sabendo de um novo emprego em um restaurante japonês da cidade, com salário melhor, mais fino, e com uma escala de folga que me dava direito a folgar em sábados e sextas feiras. Mudei de emprego da noite pro dia, meu antigo patrão não ficou muito feliz, mas eu estava.
Apaixonei-me pela gastronomia japonesa. Dediquei-me tanto, que abandonei a faculdade para aprender o máximo, exatamente no momento em que estava vislumbrado com o namoro novo, com uma nova visão de sucesso profissional. Fiz um árduo treinamento para me tornar cozinheiro, em seguida sushiman, e em seguida adicionado à gerência do restaurante mais respeitado da cidade.
Foi nesse meio de caminho que meu namoro ruiu. Enterrei-me mais do que nunca no trabalho, das nove da manhã até a uma da manhã seguinte. Tentava continuar estudando, mas minha agenda era tão apertada que isso era impossível. Acumulei uma boa quantidade de reprovações na faculdade.
Com a psicanálise comecei a questionar todos os pontos possíveis da minha vida.
Um belo dia, recebi uma proposta de sociedade de um de meus patrões, na tentativa de excluir o outro sócio da época. Aceitei feliz. Passando-se os dias notei o quanto me prenderia nesse ramo, o quanto isso me privava de outras experiências, o meu desgaste unicamente por dinheiro e sucesso baseado em uma cidadezinha que abrigava o meu ego ferido no término de uma relação. Eu estava me tornando meu ex.
Aconteceu um desentendimento libertador em maio de 2010. Fiquei tão bravo com um garçom que avisei a todos que terminaria essa noite de trabalho e me demitia logo em seguida. Decorreu de um surto meu com a confusão da venda do restaurante e o sigilo absurdo decorrente dessas maracutaias empresariais. Duvidaram de minha saída “apoteótica” como definiram alguns amigos meus, mas eles se enganaram.
Lembro-me da sensação de liberdade, do entardecer agradável, dos passeios noturnos que eu já havia esquecido, das pedaladas, dos jantares e conversas deliciosas com amigos, de participar novamente de um convívio social ao invés de prestar serviço a ele.
Entendi como a “cristalização” das situações me deixa entediado e acabam com minhas projeções, fazendo com que eu deixe de me sentir livre, de ter orgasmos com o imprevisível, de ser e viver uma vida sem premeditações.
Nossa vida pessoal absolutamente norteia a profissional, e a profissional nos leva a alterar a pessoal. Até que ponto uma altera a outra... Até que ponto elas se separam... Existe a separação... Sempre há uma escolha. São sempre escolhas a partir daí.
Nunca foi tão bom voltar a estudar as disciplinas mais entediantes!

Novo Encontro

Na virada de ano de 2010 para 2011 decidi me embrenhar em uma aventura adolescente com mais dois grandes amigos que conheci no começo da universidade. Levamos maconha, cervejas e drogas leves pra alguns dias em um apartamento alugado no centro de Bauru, impregnado do cheiro dos gatos da dona do apartamento. Vislumbrávamos relembrar os velhos tempos e sentir que eles não estavam mais tão distantes, completo engano. Esses momentos na verdade explicitam de maneira culposa e dolorida como é inalcançável nosso passado, e resultam na constatação de que ele “já era” e ponto, e ainda nota-se que acontece o mesmo com o futuro. Passado e futuro são tempos verbais úteis apenas para a lingüística, espero que me entendam nessa afirmação, pois não vou me explicar.
Claro que a oferta seria interessantíssima mesmo já com essas suspeitas, afinal de contas, amo demais meu amigos, estávamos solteiros, os três com vinte e alguns anos ainda, vivendo o momento no qual todos os nossos amigos se prendem a uma relação prisioneira ou castradora de sonhos da juventude. Invejávamos isso, ou eu invejo isso, e por isso fomos fingir que não invejávamos.
Entre bebermos muito no começo da primeira noite e quase sermos presos por dirigir bêbados (com a carta de motorista vencida, bem como a documentação do carro) no fim da noite, conheci um rapaz normal, apresentável, trabalhador e que mostrou muito interesse em mim, mesmo com meu estado alcoólico incomum.
Dois dias depois, constatei que não agüentava mais beber tanto como no começo da faculdade.
Em uma boate afastada da cidade, observei ainda o quão distante já me encontrava desses meios juvenis, figurativamente falando. Revi o rapaz da primeira noite, agora aos beijos e abraços com outro, confesso que faço parte da nova geração, mas desacostumei que as pessoas beijam e transam tanto assim hoje em dia.
Senti uma espécie de cólera nessa situação, afinal um bom partido, um bom papo, algum interesse. E ele com outro. Inevitável a minha ofensiva na troca de olhares e palavras que resultaram na troca de telefones. Cogitei que fosse um jogo histérico meu, mas não, eu liguei ao fim da noite, não foi jogo histérico, se foi enganei a mim mesmo muito bem.
Voltando pra casa, automaticamente recebi algumas ligações, sinalizando que o contato havia surtido efeito mútuo. Marcamos um encontro em Campinas na outra semana, a fim de bebermos em um bar, para nos conhecermos melhor e sair pra dançar depois. Parecia bem maduro. Fui.
Assim que nos encontramos, no outro fim de semana, notei o olhar de entusiasmo dele, e não sei se consegui esconder o meu de deslocamento. Faltava alguma coisa muito importante. Divertimo-nos, bebemos, dançamos, e transamos na casa dele ao fim da noite. Repetimos a dose ao acordarmos. Tivemos um almoço agradável no domingo, e passamos uma tarde de verão típico brasileiro curtindo um belo cochilo preguiçoso. Acordamos, tomamos mais algumas cervejas e dormimos novamente.
Segunda-feira, acordamos com o despertador, ele pro seu trabalho, e eu com a finalidade de voltar pra minha casa em outra cidade me entediar mais um pouco das minhas férias. Havíamos nos tornado outras pessoas nesse momento. Tomamos café em uma padaria enquanto alguns olhares abstratos e assuntos confusos do tipo “de elevador”. Confesso que mais da minha parte.
Voltei pra casa em seguida. No meio do caminho curiosamente lembrei-me de fazer uma ligação para o meu analista com a finalidade de reagendar o meu horário semanal desse ano. Uma ligação era muita pressão pra mim, acabei mandando uma mensagem de celular pra me sentir mais leve e marquei.
Curioso como a empresa que fornece internet é imbatível em deixar os clientes na mão quando eles mais precisam, não no trabalho, mas no tédio, cheguei em casa e não havia absolutamente nada pra fazer. Liguei fazendo uma reclamação sobre o fornecimento de internet e fui pra casa de alguns amigos verificar os e-mails e tomar um café aproveitando a companhia deles. Quando cheguei, fui alvejado com perguntas sobre o encontro, foi a primeira vez que não soube responder. E não se trata de não saber responder porque não gostei, ou porque gostei, não sabia mesmo responder. Só sei que faltou alguma coisa, exatamente a mesma sensação que tive ao ver o rapaz.
Não sei viver do vazio.